terça-feira, 27 de agosto de 2013

Uma Flor Nasceu na Rua...

Certa vez o meu pai chegou da rua com um disco de vinil chamado “Fragmentos da Poesia Latino Americana”. Ele provavelmente não fazia e nem jamais fez a mínima ideia do tipo de conteúdo que continha naquele disco, até porque, eu não me lembro te-lo visto sequer uma vez utilizando o seu tempo para saber do que se tratava a mídia.
Por outro lado, eu que o escutei por diversas vezes, posso afirmar que realmente era algo singular, pois naquele LP o famoso ator e poeta Juca de Oliveira declamava trechos de poesias (não que eu seja amante delas) que tinham um cunho dramático e por vezes revolucionário.

Entre os muitos fragmentos de poesias (geniais) como “No caminho com Maiakovski”, “Inventário de Cicatrizes”, “Cemitério de Sertão” e outros, um em especial eu realmente gostava de ouvir e por conta disso vou transcrevê-lo na íntegra.

A FLOR E A NÁUSEA (Carlos Drummond de Andrade)

Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me'?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre.
Fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
Resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres, mas levam jornais.
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquistas.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
Ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
Garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


Espero que tenham gostado.

Até a próxima...